
Só se for no teu mar
Quero me afundar no seu corpo, como meus pés se afundam na areia. Quero ser onda, só se o seu corpo for o mar Te quero como onda: sua língua lambendo todo o meu mar, do início ao fim. Agora vem cá, mergulha no meu olhar. Fica aqui, no silêncio deste mar profundo.
À Deriva
O vento invade minha casa com seu falatório. Fala alto e é insistente. Acorda o que estava dormindo. Acorda sua ausência. O vento me corta ao meio. Vem como um velho rabugento, falando mais alto, como se quem não ouvisse fosse eu. Levanto no ímpeto de fechar a janela como quem quer gritar: acha que eu não escutei? Acha que eu não escutei a ausência acordar? É que dói, dói esse arrepio na pele que fica à deriva no mar, feito barco procurando a outra pele para ancorar. Pele com pele é terra firme. Eu, barco. Você, o horizonte. 25/08/24
Por onde andas?
Por onde andas dentro de mim? Onde estás que já não te encontro mais aqui? Sou assim? Tão fácil de perder-me de ti em mim? Eu achei, achei tanto que tinha te achado Aqui. Acho que foi o contrário: me achei em ti. Acontece que me achar em ti me fez perder-me de mim. Mas Perder-me de mim (estando em ti) me fez encontrar tanto do que há aqui. Perdeste de ti procurando algo em mim? Encontraste um pouco de ti aqui? Espero que sim. Porque perder-me em ti foi um jeito de encontrar outra de mim.
Choveu na Cabeceira do Rio
E quando chove na cabeceira do rio a água encorpa, vira fera felina. não só abre caminho, arrasta com ela o que precisa estar no caminho, o que faz o caminho. Vocês já andaram por uma área que foi inundada por uma cabeça d'água? É como andar sobre destroços. galhos. troncos. folhas. pedras. tudo aparentemente fora do lugar. caos. desordem. os pés vacilam e a trilha desaparece. Essa imagem pode não ser tão bela como um rio calmo contornando as pedras. Particularmente, desde a primeira vez que eu andei sobre o que restou das águas felinas achei de uma beleza viva. beleza bruta. Essa beleza me atrai. Acho que é isso: quando o som do rio aumenta - e sabemos que é porque choveu na cabeceira e que vem água por aí - ele está sussurrando: quem evita o caos, não vive!
sou o gozo da vida
Quero que a vida me coma, para nela eu viver. Quero comê-la também, como a serpente que engole o próprio rabo, como a noite que devora o dia e como a eternidade que apaixona-se pelo tempo. ⠀ Quero ser a ovulação da vida, quero ser a sua paixão: o impulso para o novo. Quero ser fruto da união entre o tempo e o espaço, a soma de forças que se anulam e resultam no encanto da sincronicidade. Quero ser o encontro entre o desconhecido e o familiar. O casamento entre os opostos em mim. ⠀ Quero ser o gozo da vida, o roçar do mundo material e sobrenatural, o arrepio do trivial ao escutar o sussurro do mistério. Quero que a vida penetre em mim e eu nela, ao ponto de engravidarmos uma da outra: enquanto eu gesto sonhos, ela me gesta. ⠀ Sou o “sim” dado a mim no altar da vida, consagrando as minhas aspirações mais íntimas. Sou a encarnação do desejo da vida por uma existência entregue a ela mesma.
Após um dia chuvoso
Amanhã o que estava sereno e quieto estará robusto e majestoso. Livros e cadernos serão mais ágeis que as parafernálias tecnológicas. O muro será cascata: o choro da água que procura por seu destino. As formigas ainda estarão enfileiradas nas paredes úmidas. O cão, encolhido no único espaço que não foi molhado, alegre agita o rabo. Ir à quitanda será molhar os pés de quem anda, com destreza e aceitação, em seu próprio leite derramado. Atravessar a ponte será como um corpo vivo sobre outro corpo vivo. As roupas no varal secarão quando o sol se aconchegar. Me sento e observo os baldes espalhados pela casa: Goteiras, os furos da vida. Os baldes, as tentativas de quem vive.
engrunada
Engrunar = engrunhar: do dic. (1) Encolher. (2) Retirar contraindo. (3) Diminuir uma coisa de tamanho Este redemoinho é o sinal de que tem outro caminho para seguir. Aqui é onde a água engruna. A água é levada por um caminho não esperado. Não é o caminho entre as pedras, é um caminho dentro das pedras. Em algum momento, em algum lugar essa água voltará à superfície. Ao ver este pequeno redemoinho lembro-me que a quilômetros daqui existe uma cachoeira com uma queda majestosa. Ela guarda um mistério. Sua beleza agride minha ignorância. Seu segredo desnuda minha vaidade. Repito a pergunta que muitos já fizeram: de onde vem essa água? Estremecida pela vida que ela move em mim, a pergunta torna-se uma súplica: “O que eu sou para você? O que você quer de mim?” O seu segredo me é revelado: Vem de dentro! A água agora em queda é a mesma que foi engolida pelas pedras. Quantos redemoinhos foram necessários para chegar até esse encontro? Os redemoinhos se unem num longo lençol branco sendo estendido. Um grande tapete esticado para dar passagem… Sua beleza vem assombrando meus dias. Escuto entre os cômodos da casa e nos passeios ao rio: “Vem de dentro! Toda aquela água já foi redemoinho.” Ah! Se eu não achar beleza em tudo isso, não sei como poderei ver beleza em meus próprios redemoinhos, em minhas águas engrunadas e em meus grandes tapetes de água.
sonhadora
Dos sonhos perdidos aos sonhos que me acharam. Dos sonhos certeiros até aos sonhos que se realizaram sem nem eu mesma sonhar. Dos sonhos que nasceram de mim aos sonhos que fizeram outra de mim nascer. Dos sonhos que deixei de sonhar junto para não deixar de sonhar. Dos sonhos que cristalizei no horizonte - e por isso não me permiti sonhar - até aqueles que foram mais que sonhos: um apelo da vida. Dos sonhos indivisíveis aos sonhos que só fazem ninho onde há revoada. Dos sonhos que desisti, adiei e esqueci que um dia sonhei, até aos que, feito folhas que dançam no outono, caíram sobre mim. Do sonho noturno até aos sonhos que amanhecem o meu dia. Dos sonhos que mudam a vida até a vida que muda os nossos sonhos.
Insuficiência
A sensação é que há uma insuficiência dos meus sentidos. Enxergo, mas algo ligeiro atravessa a cena e só com os olhos não sou capaz de capturá-lo. Tenho ouvidos, órgãos externos, inúteis quando quero escutar um ruído interno. Quando toco, sinto a superfície que toco. Só que a questão é: às vezes acho que quem é a superfície sou eu. Então, o que me toca? Se farejo meu corpo sinto que meu cheiro tem pegadas de alguém que semeia. Um tanto me escapa, mas não deixa de existir. Está aqui, entre camadas, cheio de força, movendo-se através de mim. a partir de mim. além de mim. Me faz sentir que sou estrangeira em meu próprio corpo, pensamento. Ainda assim, desloca-se em confluência com a vida. Talvez o que me escape seja a própria vida, em seu estado puro e indecifrável…
ainda
Você ainda está aqui. Você pode achar que eu o tirei de dentro de mim, como o tirei da minha vida. Mas, não. Suas mãos estão em cada parte do meu corpo. Seus lábios por vezes percorrem minhas pernas pela manhã. Minhas mãos buscam o celular constantemente para te avisar ou só contar. Te procuro na cama quando sinto medo do amanhã. Não há um dia se quer que eu saia sem a sensação de esquecer algo. Minha mão esquerda sente o esquecimento pesar. O desconforto do desconhecido. Não, isso não é amor. Não mais, meu amor. Talvez, um corpo viciado. Uma mente treinada. Uma vida dentro de outra vida. Você ainda me visita, Nos meus sonhos. No meu remorso. Nas culpas que ainda me condenam. E no medo que me assombra, De uma vida sem sua presença. Sem promessa. Não quero a pressa. Fique aqui, o tempo que for necessário. Se ainda me ama, ame. Se ainda me odeia, odeie. Se ainda me quer, me deseje. Se ainda dói, deixa doer. Terei paciência. Faça disso música, poesia. Até se esgotar. Até virar pó. Até o meu olhar não te ferir. Até meu sorriso não te constranger. Até minha voz não te sacudir. Até eu ser apenas uma lembrança. Uma lembrança de um amor. Porque foi. Uma lembrança de ter sido amado, Porque amei. Me esqueça, para eu te esquecer. Me perdoe, para eu me perdoar. Me ame até o Fim Pois o Meu já está a recomeçar.
amor
comum
Quero um amor comum. Um homem comum, defeituoso e disposto. Defeituoso feito pia que pinga e lâmpada desencaixada. Disposto a amar o que em mim talvez não tenha conserto, como gambiarras feitas só para tentar levar a vida com mais jeito. Quero amar como mulher comum. Defeituosa e disposta. Há coisas que não me incomodam mais, como acender o fogão com fósforo. Não ligo, gosto de dar-lhe a chama. Acho que tem coisa no amor comum que será assim, como pia que pinga, lâmpada desencaixada (que é só dar uma apertada que já ilumina), gambiarra que se contenta como solução, nem que seja temporária. Quero um casal comum, que passa despercebido em meio à multidão com sacolas da feira que guardam histórias dos sabores de cada um. Quero dizer “eu te amo” a um desconhecido aos olhos do mundo. Quero tirar a roupa para aquele que me devora como mulher comum. Quero ser amada em minha insuficiência E quero te amar em seus desajustes. Amar mais Com menos cobrança (se for possível) Amar mais Com menos promessa (se eu conseguir) Amar mais Com menos suposições (assim espero) Amar mais, sem precisar de muito. Quero amor inteiro com defeitos, amor feito no chão, amor escrito à mão, amor beirando a boca do fogão, coando café para um dia sem fé. Não se engane O amor comum não é seco, nem monótono. É apenas mais um.
sou mulher, peixe ou pássaro?
E se eu te contar que já estive, ao mesmo tempo, no fundo do rio e nas alturas do céu? Acreditaria em mim? Ou desconfiaria do que a natureza trama? Mergulhei no rio e atravessei os ares! Acredite se quiser, mas eu estive nadando nas nuvens em um dia de uma alegria crua. Descobri que as nuvens não são algodões, são espumas! Sabe as formas que vemos no céu? É alguém brincando com o curso da água. Se ainda desacredita, me diga, os peixes não estão a voar pelas águas, enquanto os pássaros flutuam no azul suspenso? Há um rio que corre dentro do céu. Há um céu dentro do rio. E se você ainda não crê Não me importo mais Já que nem eu sei se sou mulher peixe ou pássaro.
de novo
Voltar para um lugar nunca é voltar para o mesmo lugar. Retornar sempre é se deparar com o desabrigo. O que fica é o rastro do que suponho ter sido persigo o rastro na tentativa de possuir de novo. De novo: o novo, mais uma vez. Beber vinho de novo. Beijar de novo. Tomar banho de rio de novo. Amar de novo. De novo: é procurar abrigo onde acredito que já Tenho. Mas o que tenho é só o velho e nunca sempre novo de novo e de novo.
Longe da
hora
Minhas manhãs acordam turvas Se vê pouco lá fora Embriaga sou jogada para longe da hora Neblinada Sou ideias silenciosas que dançam no nevoeiro do café coado A fumaça do incenso se mistura com a do tabaco Orvalho nos olhos de uma alma que se espreguiça A alvorada do sonho anuncia a chegada de mais um dia.
DIA DE FEIRA
Dia de feira De comida fresca Dia de saborear cor Temperar o cotidiano Ver conhecido na rua Carregar sacola cheia de planos para a semana Dia de feira Dia de casa cheia Quase um domingo-feira.
em breve estarei aí
Em breve estarei aí indo pra sua cama, ainda sonolenta sentido o friozinho do amanhecer, resgatar os sonhos da noite que acordou. Vamos contar a vida noturna uma da outra, vamos rir, vários gestos, a voz ganhará ânimo e o próprio sonho nos expulsará da cama. Continuaremos à mesa da cozinha, enquanto uma coa o café e a outra coloca pão de queijo no forno. Os cachorros ficarão agitados, possuídos pelo nosso entusiasmo. Continuamos no sofá da sala. O café está quente e o pão de queijo ainda no forno. Não resistimos e deixamos os cachorros entrar. As janelas querem trabalhar! Agora é a hora que elas dão vida à casa. Você abre uma e eu a outra. Um vento modesto se apresenta. Ganha tamanho entre os cômodos aumentando o cheiro do pão de queijo que já já estará pronto. Voltamos para o sofá. “Qual parte do sonho eu parei?” Sua pergunta é quem te lembra: “ah estava aqui”. Agora você está de pé encenando o sonho. Os cães são telespectadores ativos. E eu aqui neste sofá. este mesmo onde já estive tantas outras vezes. Sendo tantas que já fui. Todas elas sendo sua filha.
tesouro
Fiz da casa um Caça-tesouros Cacei poesia em cada canto da casa Também fui caçada pelas palavras Descobri que tem química entre meu corpo e suas paredes Tesão forte entre as palavras uma atrai a outra e eu que me vire para casa-las
espíritos livres
As roupas no varal incorporam o vento, como se espíritos livres, ao se aventurarem na tempestade, encontrassem refúgio em vazios pendurados. Meu espírito inquieta-se, quase fico como as roupas no varal. Sou refúgio para os que vagam através do vento e um varal de vazios estendidos.